Em entrevista ao ‘Público’, Pia Sundhage, seleccionadora sueca, afirmou que “não há razão para Portugal não ser dos melhores no futebol feminino”. Numa altura em que estamos a escassas horas de celebrar a entrada em 2014, aproveito esta época de balanços e expectativas para avaliar a actual situação do futebol feminino português. À semelhança de Sundhage, acredito veementemente que o futebol feminino português tem um enorme potencial e que pode começar a afirmar-se, quer a nível de clubes, quer a nível de selecções, num futuro próximo. No entanto, para se “dar o salto”, é preciso superar alguns obstáculos.
Mentalidades
Futebol feminino não é melhor nem é pior. É diferente. Foi com esta frase que terminei o meu primeiro texto sobre esta modalidade, aqui no Bola na Rede, e volto a fazer uso fruto da mesma. Enquanto os entusiastas e dirigentes desportivos continuarem a ver o futebol feminino português como uma espécie de “futebol inferior”, nada pode ser feito. Este dogma, bem vincado na sociedade desportiva contemporânea, não tem qualquer razão de ser, e basta olharmos para o estrangeiro para ter a certeza disto mesmo. Estados Unidos da América e China são dois exemplos de países onde o futebol masculino nunca teve qualquer tipo de peso considerável – aqui, são as mulheres que elevam a bandeira nacional ao mais alto nível. Outros países, como a Alemanha, a Suécia ou mesmo o Brasil, já demonstram que é mais do que possível ser bem-sucedido a nível internacional com selecções em ambos os géneros. A maioria das dificuldades que vários países têm em se afirmar enquanto forças no futebol feminino passam por questões desportivas, estruturais e financeiras, é certo. Mas, enquanto se continuar a pensar que “futebol é só para rapazes”, é completamente impossível para qualquer selecção ter uma estrutura quer produtiva, quer competitiva. Tratar de forma igual o futebol de ambos os géneros pode ainda ser, no caso português, uma exigência demasiado irrealista, mas não há razão nem argumentos para não se ver o futebol feminino como uma modalidade passível de se investir e na qual se podem gerar inúmeros ganhos. Este é um dos maiores problemas do futebol feminino, e só ultrapassando este preconceito é que se pode dar asas às raparigas portuguesas para atingirem o seu verdadeiro potencial.
Maior destaque por parte da comunicação social desportiva
Neste ponto, dou um exemplo que ilustra muito bem a pouca consideração que os media desportivos portugueses têm para com o futebol feminino. O Atlético Ouriense, campeão nacional do ano passado, jogou a fase de apuramento para a Liga dos Campeões, no início desta temporada. Não havia um único jornal desportivo “dos grandes” que estivesse a acompanhar a marcha do marcador no seu site online. Isto só por si já é grave, mas, se tivermos em conta que o grupo de apuramento no qual o Ouriense estava inserido fez os jogos de apuramento em Fátima e Torres Novas, é simplesmente vergonhoso que nenhuma das grandes redacções tenha sequer acompanhado a partida em directo. Não se pedia uma grande emissão televisiva, flash interviews, análises infindáveis do ante e pós-jogo, nem programas de debate desportivo em que se revêem os casos da partida por horas a fio – bastava lá ir alguém para ir actualizando o resultado do jogo. Nos dias seguintes, uma ou outra notícia a um canto de uma página, quase nota de rodapé, que lá informava a nação do que se passou na Liga dos Campeões, que decorreu no nosso país.
Será pedir demais ter um bocadinho de respeito e consideração pelas atletas portuguesas que representavam o futebol feminino nacional e a quem basicamente ninguém passou cartão? É certo que esta é uma tendência em decréscimo, mas está ainda a anos-luz daquilo que realmente merece. Menos notícias sobre o último porche que Ronaldo comprou e um pouco mais de destaque a uma modalidade que está em franca e visível evolução é algo perfeitamente concretizável, que não só traria mais pessoas para o desporto como ajudaria a solucionar o problema de mentalidades que referi há pouco. Será assim tão difícil perceber isto?
Apostar em grande
A Federação Portuguesa de Futebol investiu mais de dois milhões de euros nas selecções femininas de futebol no ano transacto. As sub-17 portuguesas marcaram presença na fase final do Campeonato da Europa, e isto, sublinho, apenas um ano após o escalão ter sido criado. O balanço final de todos os escalões femininos a nível de selecções em 2013 até é positivo – 14 vitórias, 12 derrotas. Qualquer clube que faça uma aposta razoável e ponderada no futebol feminino não demora muito até recolher os louros. A equipa do 1º de Dezembro foi campeã nacional durante 11 anos consecutivos em grande parte por ser a equipa que oferecia melhores condições às suas atletas, a que se aliou uma estrutura de formação que ainda hoje dá cartas no panorama feminino nacional. Mais recentemente, Atlético Ouriense e A-dos-Francos comprovam a teoria de que uma aposta forte na modalidade é sinónimo de muitas vitórias e até títulos.
Agora que o campeonato nacional feminino está cada vez mais competitivo e a selecção portuguesa tem demonstrado que pode dar cartas a nível internacional, esta é a altura certa para investir em força no futebol feminino português. Se bem que “investir em força” é um termo algo exagerado. Muitas vezes, basta garantir às atletas um mínimo de condições para se ter uma equipa empenhada e competitiva. Veja-se o recente caso da internacional portuguesa de 24 anos, Tita. Depois de ter alinhado no Atlético Ouriense, nas últimas três temporadas, Tita recebeu uma proposta de trabalho dita “irrecusável” e não chegou a acordo com o actual campeão em título para continuar a defender as cores do clube. A médio centro vai, assim, voltar ao UR Cadima, clube que a lançou e que está actualmente na Série C do Campeonato de Promoção.
Não se exigem grandes salários ou regalias que muitas vezes são dadas a jogadores que nem disputam o primeiro escalão masculino. Ter uma estrutura que consiga suportar despesas básicas e proporcionar um mínimo de condições de treino às suas atletas é meio caminho andado para ver uma equipa a disputar os lugares cimeiros da tabela do campeonato feminino.
Eventual profissionalização
Sem nenhum dos obstáculos anteriores superados, a profissionalização do futebol feminino em Portugal só iria causar mais danos do que benefícios. A estrutura por si só ainda é muito frágil, e “pôr o cavalo à frente dos bois” nesta questão provavelmente iria ameaçar a pureza do espírito competitivo que nesta modalidade ainda se vive. Ao “eterno campeão” 1º de Dezembro bastou a saída de algumas jogadoras de peso e dificuldades em arranjar patrocinadores para que em dois anos a equipa passasse de campeã a lanterna vermelha. Há, por isso mesmo, que ter muito cuidado com a forma como se profissionaliza o futebol feminino português. No entanto, e ainda que esta seja uma espécie de “última fronteira”, só com a profissionalização completa da modalidade é que se pode chegar ao próximo nível. As jogadoras portuguesas não devem aspirar a ir jogar para o estrangeiro para fazerem do futebol primeira e única profissão, e verem devidamente valorizados o seu trabalho e qualidade. Este processo é inquestionavelmente moroso. Acredito, no entanto, em que esta é a altura ideal para se começar a dar os primeiros passos, que podem passar por um envolvimento dos três grandes do futebol nacional. Sporting, Porto e Benfica têm a estrutura clubística e a capacidade financeira ideais para fazer resultar um investimento ponderado no futebol feminino, o que, por sua vez, poderia proporcionar um enorme progresso da modalidade em Portugal.
Como refere Pia Sundhage, “a qualidade existe. Em Portugal respira-se futebol”. Os obstáculos são muitos, mas os últimos anos têm registado uma evolução notável. Não será em 2014 que o futebol feminino nacional “dará o salto”, mas este pode bem ser o ano em que se dão os passinhos preliminares. Só depende de nós. E, acreditem, não acho que seja assim tão difícil.