A arte de complicar

    Quando eu era pequenino, acabado de nascer, ainda mal abrira os olhos e já exasperava pai e mãe no mais quotidiano e corriqueiro passeio ao pôr-do-sol. Contra as altas recomendações progenitoras, pese o tom e o conteúdo das advertências, era incapaz de seguir caminhando em linha recta, optando sempre, por razões que ainda hoje ignoro, pela alternativa mais longa, mais lenta e mais cheia de obstáculos.

    Deparando-me com um trajecto rectilíneo, com suficiente largueza e visibilidade, agradáveis sombras de dia e bem iluminado à noite, daqueles sempre a direito, que praticamente levam ao colo todo e qualquer caminheiro, resolvia, invariavelmente, dificultar a tarefa, ziguezaguear por ali, subir ou descer de patamar, arranjar um ou dois obstáculos com que me entreter; e assumia-o como uma insondável questão de honra.

    A fórmula não variava muito: se bastassem dois passos, subia ao muro, fazia um pouco de equilibrismo, saltava ao pé-coxinho, ou cumpria o resto do passeio de costas para a meta ou com os olhos bem cerrados; se bastassem dois degraus, subia-os de uma só vez, de pés muito juntinhos, ou contornava a escadaria pela rampa escorregadia de relva ou de terra batida; se houvesse poças saltava-lhes para cima; se existissem buracos ou fendas ia-lhes ao encontro; num dia recusava pisar os quadrados pretos; noutro não calcava os brancos.

    Esta característica, tão própria da infância, nunca representou verdadeiramente qualquer dissabor. O risco assumido, ingénuo e porquanto moderado, tinha somente o efeito – para além de enfadar os pais – de me fazer perder o dobro (por vezes o triplo) do tempo que os demais, de me ser mais trabalhoso, suado e dorido chegar finalmente à meta. Concebia obstáculos à minha volta, demorava-me em contendas evitáveis, apenas e só movido por um ingénuo desejo de aventura; conclui sempre tais caminhadas com nota positiva – mas expunha-me positivamente ao erro, proporcionava a falha, e quando assim é o sucesso torna-se mais difícil de alcançar.

    Chegamos finalmente ao ponto que motiva o leitor a frequentar estas páginas – agradeço-lhe desde já a paciência demonstrada e prometo explicar-me rapidamente: é natural, até mesmo um sinal de saúde desportiva e financeira, ver cobiçados e contratados por milhões, pelos mais poderosos clubes do mundo, os jovens e talentosos jogadores capazes envergar com sucesso a pesada camisola do Benfica; é o preço da glória e ninguém, do topo à base (esta última feita dos sócios e adeptos), rejeita tal fórmula. Parece-me, porém, mais incompreensível a falta de capacidade demonstrada pelos responsáveis do clube em colmatar, chegados a este ponto, essas mesmas saídas. Recorde-se que neste defeso foram vendidos Ederson, Nelson Semedo e Lindelof, três pilares do sector defensivo tetracampeão, o que motivaria, obviamente, a uma ida ao mercado objectiva e responsável, numa lógica de preenchimento directo das vagas. Entretanto, cumprida a Supertaça e mais duas jornadas da Liga, essas lacunas continuam por solucionar.

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    João Amaral Santos
    João Amaral Santoshttp://www.bolanarede.pt
    O João já nasceu apaixonado por desporto. Depois, veio a escrita – onde encontra o seu lugar feliz. Embora apaixonado por futebol, a natureza tosca dos seus pés cedo o convenceu a jogar ao teclado. Ex-jogador de andebol, é jornalista desde 2002 (de jornal e rádio) e adora (tentar) contar uma boa história envolvendo os verdadeiros protagonistas. Adora viajar, literatura e cinema. E anseia pelo regresso da Académica à 1.ª divisão..                                                                                                                                                 O João não escreve ao abrigo do novo Acordo Ortográfico.