O mais famoso adepto do Benfica – Entrevista ao “Barbas”

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    Podemos dizer que há dois grupos de pessoas sem as quais o futebol não poderia existir: os jogadores e os adeptos. Os primeiros ambicionam atingir o estrelato, ganhar dinheiro, conquistar títulos e ver o seu nome imortalizado na História do desporto-rei; os segundos são simples homens e mulheres anónimos, e não consta que nenhum deles tenha feito vida à custa do futebol apenas por apoiar um determinado clube. No entanto, são eles, os adeptos, a razão de ser do futebol. Caso contrário, quem idolatraria Cristiano Ronaldo? Quem tentaria imitar a forma de jogar de Messi? Quem se lembraria actualmente de nomes como Beckenbauer, Cruijff, Pelé ou Maradona?

    Um destes adeptos começou tão anónimo como todos os outros, mas hoje em dia já é tão ou mais famoso do que os jogadores do clube que apoia. António Ramos, ou o “Barbas”, tem 68 anos e é natural de Oleiros, uma pequena localidade na Beira Baixa. Ligado ao ramo da restauração, este benfiquista ferrenho segue fielmente o clube do coração para todo o lado, seja em Portugal ou na Europa. Ficou conhecido pela presença quase religiosa nos jogos do Benfica, pela oposição ao ex-presidente do clube João Vale e Azevedo e, claro, pelo visual peculiar que exibe desde há várias décadas. O “Barbas” é dono de vários restaurantes da Costa da Caparica, onde são vistos com frequência jogadores do Benfica – e não só, como faz questão de nos dizer – a tomarem as suas refeições. Numa altura em que o clube da Luz poderá estar prestes a conquistar um título que por pouco lhe escapou no ano passado, o Bola na Rede foi à Margem Sul conhecer o adepto mais famoso do país.

    Como surgiu a sua paixão pelo Benfica?

    Como todos os benfiquistas, vem desde criança. Na altura só havia rádio, e era a voz do sr. Artur Agostinho, que por acaso até era sportinguista, que nos fazia ver o que era o Benfica. Ele relatava os golos com tanto frenesim que nós pensávamos que, quando fôssemos para Lisboa – o sonho de qualquer miúdo – havíamos de tentar conhecer melhor o Benfica. Eu cheguei à capital com 12 anos e foi isso que fiz. A partir daí, nunca mais parei.

    O que é que o Benfica significa para si? Muda o seu dia-a-dia? Obriga-o a fazer sacrifícios?

    Para mim, o Benfica está acima de tudo. Eu até costumo dizer à minha família que eles estão em segundo lugar, mas eles já estão vacinados contra isso. O clube tem-me ajudado muito, inclusive na vertente comercial. Eu estou ligado à restauração e os meus restaurantes estão bastante subordinados ao tema Benfica. Também acompanho muito o clube, inclusivamente nas deslocações pela Europa. Ando há cerca de 30 anos a acompanhar o Benfica em todas as viagens. Infelizmente, das quatro finais europeias a que já pude assistir, não tive a sorte de ver nenhuma vitória. Espero que este ano isso mude! Em resumo, o Benfica faz parte da minha vida, ao ponto de eu não poder dar um passo na rua sem que me reconheçam e me associem de imediato ao clube.

    Qual foi a última vez que falhou um jogo no Estádio da Luz?

    Não falho nenhum desde há 50 anos. Mas já não vou aos outros estádios. Dantes ia, mas infelizmente o futebol tornou-se um bocado violento. Quando eu era jovem não era assim: pais, tios, netos, avós, mulheres… todos podiam ir à bola. Hoje é complicado, e eu comecei a ter alguns problemas quando me deslocava, principalmente ao norte. Nunca entrei no novo estádio do Porto, porque ainda nos tempos do estádio antigo comecei a ter problemas. Da última vez que fui a Braga também aconteceu o mesmo… Mas ao novo estádio do Sporting fui. Estive na inauguração, naquele célebre jogo com o Manchester United em que o Cristiano Ronaldo impressionou toda a gente. No resto da Europa, porém, é diferente, e desde emigrantes portugueses, a rádios, a televisões, todos querem falar comigo. Dou por mim a pensar: “mas quem sou eu para merecer toda esta atenção?”. O Benfica faz parte da minha vida. O meu restaurante antigo, mesmo ao lado deste, tinha cerca de 2000 quadros do Benfica, a grande maioria oferecidos. Parecia um museu. Infelizmente o edifício foi demolido, eu guardei-os numa garagem mas um dia veio uma cheia e perdi tudo. Nessa altura chegaram a vir televisões da China, do Japão, da África do Sul… Todas elas vieram saber como é que um dono de um restaurante fazia a sua vida e como era a sua paixão pelo Benfica.

    ”Barbas” sentado no seu “trono”: a águia e as referências a Eusébio são duas presenças constantes neste templo consagrado ao benfiquismo
    ”Barbas” sentado no seu “trono”: a águia e as referências a Eusébio são duas presenças constantes neste templo consagrado ao benfiquismo
    Fotografias de João V. Sousa e Ludovic Ferro

    Porquê essa barba?

    Lembro-me de ser jovem e de aparecerem muitos rapazes ingleses com barba e cabelo compridos, nos quais me inspirei. Já tenho esta imagem há mais de 40 anos. Mas, antes disso, com o regime do Salazar, ninguém usava o cabelo e a barba assim. Estive na vida militar e fui empregado bancário, e nunca pude adoptar o estilo de que gostava. Ficava com o cabelo meio encarapinhado, pelo que muita gente na altura até pensava que eu era africano. Ainda hoje tenho essa fama, mas não me preocupa nada e às vezes até digo na brincadeira que sou cabo-verdiano. Depois apareceu o 25 de Abril e toda a gente usava o cabelo grande, principalmente quem se identificava com o sistema soviético. A certa altura fui para a marinha mercante, decidi que ia deixar crescer a barba e o cabelo e nunca mais cortei. O meu filho, que tem quase quarenta anos, nunca me viu de outra forma. Nem sequer a minha mulher. Hoje em dia há aquela “meia barba” que toda a gente usa. As modas vão e vêm, mas eu fico sempre igual. Nunca hei-de cortar isto, nem que o Benfica seja campeão europeu. Este visual faz parte de mim.

    O que fazia antes de ter os restaurantes?

    O meu primeiro emprego foi na restauração, logo aos doze anos. Depois estive na polícia militar durante três anos aqui em Lisboa, e quando saí fui trabalhar para o Banco Pinto & Sotto Mayor. Mas sentia-me fechado, pelo que arranjei uma cédula marítima e embarquei durante uns anos. Apesar de trabalhar num navio alemão, na altura do 25 de Abril tudo se modificou e os portugueses começaram a fazer muitas reivindicações, pelo que os alemães passaram a contratar outros trabalhadores. A partir daí, ainda em 1974, enveredei pela restauração e nunca mais parei. Tive várias casas em Lisboa e depois vim aqui para a Costa.

    Quer dar exemplos de alguns episódios marcantes que protagonizou e que envolvam o Benfica?

    Foram muitos. No fim da inauguração do novo Estádio da Luz, por exemplo, fui ao centro do terreno, ajoelhei-me e comecei a comer a relva. Disse a um colega seu que era para dar o exemplo aos jogadores do Benfica e para lhes fazer ver que tinham de fazer aquilo para sentirem o que é o Benfica. Há uns tempos fomos à Alemanha jogar com o Estugarda. Eu viajei com um grupo muito unido de benfiquistas que me acompanham nestas andanças, e dos quais infelizmente já só restam quatro ou cinco. O Benfica nunca tinha ganho naquele país, portanto nós decidimos que, se ganhássemos, íamos a pé para o hotel. Vencemos o jogo e assim foi. O problema é que aquilo era mais longe do que pensávamos e demorámos quatro horas a lá chegar. Tivemos a sorte de encontrar um português – há sempre um em qualquer lado! – que nos levou até lá. Eu sei que isto não lembra ao diabo, mas fizemo-lo pelo Benfica.

    Em Paris, também assisti a um jogo do Benfica num estádio com cerca de 50 000 pessoas, e que tinha mais portugueses do que franceses. É um caso raro no futebol. De resto, alguns dos melhores momentos que vivi a nível de deslocações ao estrangeiro passaram-se na União Soviética. Por exemplo, o Yashin e o Eusébio eram amigos, e este último fez questão que eu fosse com eles a um evento. Ele disse: “Ó Barbas, eu não sou o Benfica. Tu estás todo equipado e representas melhor o clube”. Para mim isto foi um momento de glória, porque pude estar perto de dois monstros do futebol.

    Qual é a melhor memória que tem do clube? E a pior?

    Tenho mais memórias positivas do que negativas. Não vou dizer que a pior foi o nosso actual treinador ajoelhar-se por causa de uma derrota [jogo com o Porto em 2012/13]… Aquela final europeia que perdemos nos penaltis [final da Taça dos Campeões de 1987/88, contra o PSV Eindhoven], com um falhanço do Veloso, deixou-me muito triste. Tivemos muitas oportunidades para ganhar o jogo e acabámos por perder aí. Depois, quase nem vale a pena falar do tempo de um presidente que infelizmente tivemos, o Vale e Azevedo. Em Vigo levámos 7 do Celta. Eu estava lá, vi três golos e tive o pressentimento de que ia ser o descalabro. Vim-me embora do estádio e sentei-me lá num degrau a ouvir o relato. Comecei a chorar, e quando dei por mim tinha dezenas de pessoas à minha volta.

    Memórias boas, como disse, são muitas. Dá-me um gozo especial ir com o Benfica ao estrangeiro, é impressionante. No Estádio da Luz não páro um minuto, as pessoas estão sempre a querer tirar fotografias comigo. As derrotas para mim nunca contam. Costumo dizer que o Benfica nunca perde, os outros é que às vezes nos ganham.

    Apesar de ser conhecido como um benfiquista irredutível, o “Barbas” já recebeu na sua casa vários jogadores dos rivais. Também não esconde alguma mágoa por não poder entrar em alguns estádios do país
    Apesar de ser conhecido como um benfiquista irredutível, o “Barbas” já recebeu na sua casa vários jogadores dos rivais. Também não esconde alguma mágoa por não poder entrar em alguns estádios do país
    Fotografias de João V. Sousa e Ludovic Ferro

    Como encara o facto de o seu restaurante ser frequentado por vários jogadores e equipas de futebol?

    Após Portugal ter ganho o título de campeão do mundo [sub-20, na Arábia Saudita em 1989] todas as equipas de futebol passaram a vir aqui. O Figo, o Rui Costa, o Carlos Queiroz e até jogadores do Sporting e do Porto. Dou-me bem com toda a gente. E o restaurante passou a ser muito frequentado por causa disso. Lembro-me, por exemplo, que quando o Preud’homme chegou a Portugal veio cá almoçar com os pais, trazido por um empresário. O restaurante tinha um terraço e ele ficou deslumbrado com a vista, de tal forma que perguntou se seria possível deixar os pais ali enquanto ele ia ao estádio da Luz tratar de assuntos. O belga só perguntava “como é que é possível nós chegarmos aqui e sermos tão bem recebidos sem nos conhecerem?” E todos os jogadores de maior vulto que vieram para o Benfica, em particular os brasileiros – o Valdo, o Mozer, o Ricardo Gomes, o Isaías, etc. – também passaram por aqui. Do Porto e do Sporting também: Fernando Gomes, Sousa, Jaime Pacheco… Uma vez o plantel do Sporting ia fazer uma festa de Natal, e o Cadete, que era o capitão, decidiu que o jantar iria ser no meu restaurante. Sendo eu benfiquista, naturalmente os outros jogadores ficaram desconfiados. Mas o presidente Sousa Cintra, de quem já na altura eu era amigo, fez-lhes ver que sempre que aqui tinham vindo tinham sido bem recebidos. E eles lá fizeram o jantar aqui, com a direcção e tudo. Sempre que os jogadores de futebol vêm cá eu ofereço-lhes a refeição, porque eles também trazem muita clientela. Como se costuma dizer, uma mão lava a outra. Ainda ontem à noite esteve cá o treinador do Benfica a jantar, e muita gente veio aqui ver se o via.

    Tem o seu nome gravado no chão das imediações do Estádio da Luz?

    Sim. Está perto da estátua do Eusébio, em que não está escrito o meu nome – António Ramos – mas sim “O Barbas”. Depois tenho outra com o meu nome, o da minha mulher e o dos meus filhos.

    Pensa fazer-se enterrar com as cores e o símbolo do clube?

    Tenho assistido a algumas perdas relacionadas com o Benfica. Uma viagem que me deixou muito marcado foi a ida à Hungria na altura da morte do Fehér, para a qual levei uma bandeira que depositei no caixão dele. Agora, no funeral do Eusébio, também levei algumas peças do clube e pus lá um cachecol do Benfica. Mas cada um pensa da sua maneira. Feliz ou infelizmente hoje temos opção de escolha. Eu já disse à minha família que quero ser cremado, e como não quero queimar coisas do Benfica esse é um assunto que está posto de parte.

    Imagina a sua vida sem o Benfica?

    Não. Impossível.

     

    Entrevista realizada por João V. Sousa e Ludovic Ferro

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