Força da Tática: Os centrais do futebol total

    força da tática

    Há temas cuja escolha é perfeitamente aleatória e que, por isso, dispensam justificações. Este, contudo, não o é. Porquê falar de centrais num determinado modelo de jogo e não falar, por exemplo, de médios centros ou extremos? Porque os centrais são, a par dos avançados, aqueles que mais frequentemente são vistos como jogadores de um momento do jogo apenas. Nada mais errado, cada vez mais. Hoje, focar-me-ei nos centrais; no meu próximo artigo serão os avançados o tema de análise.

    O futebol tem evoluído ao longo dos tempos devido à quantidade de estudiosos e treinadores que o têm pensado. Um dos principais – Johan Cruyff – foi dos primeiros a aplicar alterações muito profundas naquilo que é a maneira de procurar a vitória de forma sustentada. Nunca se esqueçam disto, nenhum treinador quer mais algo do que ganhar. Nem pode querer. Não há Guardiolas nem Bielsas que prefiram jogar de forma X a ganhar. Simplesmente entendem que a forma X é a que mais vezes os leva ao sucesso regular. Cruyff, mentor do “Dream Team” do Barcelona nos anos 90, disse uma vez “In my teams, the goalie is the first attacker, and the striker the first defender”É neste princípio básico que se sustentarão estes dois artigos.

    Johan Cruyff, ao serviço do Barcelona  Fonte: jotdown.es
    Johan Cruyff, ao serviço do Barcelona
    Fonte: jotdown.es

    O Objectivo

    Um futebol mais fluído e apoiado é, no fundo, o objectivo da que alguns chamam a linha de pensamento Cruyffista. Para que seja possível atacar melhor, é preciso que todos sejam capazes de atacar. O mesmo raciocínio é aplicado ao processo defensivo. Se todos defenderem, a equipa terá tendência a defender melhor. Pura lógica, correcto? No futebol actual, com as equipas melhor preparadas quer física quer tacticamente, há cada vez menos espaço para conjuntos que funcionam por sectores independentes que separam as funções de ataque e defesa entre si. A Argentina do Mundial de 2014 foi um exemplo claro de uma equipa com um potencial tremendo que, embora tenha alcançado a final, deu sempre a sensação de ficar aquém do possível… devido à estratégia arcaica que o seu treinador montou, em que 6/7 jogadores eram responsáveis pelo momento defensivo e 3/4 pelo momento ofensivo.

    Para que este objectivo seja exequível, é obrigatório que todos os jogadores estejam prontos para enfrentar todos os momentos do jogo. Os da organização e transição, quer ofensiva, quer defensiva. Não só é necessário que cada um daqueles que está em campo esteja habilitado a fazer o que lhe é pedido pelo seu treinador, como é altamente aconselhável que os mesmos jogadores entendam aquilo que têm de fazer. Isto é, que entendam o jogo. Se assim for, estarão sempre preparados para encarar mais situações do que aquelas que o treinador lhes conseguiu transmitir no pré-jogo. Um pouco como no provérbio “não dê o peixe, ensine a pescar”, o melhor que o treinador pode fazer não é tentar prever todas as situações do jogo – até porque seria uma tarefa impossível -, mas tentar que os seus jogadores entendam bem as suas ideias, para que saibam reagir correctamente conforme o contexto apresentado.

    O que é defender?

    “What is defending? In Barcelona we won the CL and 4 Ligas with Koeman and Guardiola as defenders. Now if there are two examples of players who cannot defend its those two. But they did play in the heart of defense. So what is defending? Defending is about space. If I have to defend this whole garden, I’m the worst defender. If I have to defend this small area, I’m the best. It’s all about meters. That’s all.”

    Novamente recorrendo aos ensinamentos de Johan Cruyff, entendemos desde logo um princípio básico do que é o melhor defender. A zona. O espaço (veja-se quantas vezes é dito por Pep “espacio” no vídeo abaixo). E a bola, claro. A bola, como primeira referência, indica depois o espaço essencial que deve ser defendido. Se há muitos adversários longe da bola e da baliza, que sentido fará marcá-los? São inofensivos, mas é isso que manda a defesa homem vs homem e que, parecendo que não, ainda tantas equipas seguem. O Barcelona de Guardiola – indicado como referência para quase todos no momento da posse e na forma como atacava -, foi das equipas do último século que melhor defendeu no momento de organização defensiva. Desde logo porque eram poucos esses momentos, mas também porque era exímia em ocupar os espaços sem bola. Em Portugal, nada melhor do que o exemplo de Jesus. O Benfica da época passada foi de longe a equipa que melhor defendeu em Portugal nos últimos largos anos.

    Individualmente é, pelas razões anteriormente demonstradas, crucial que mais do que forte, rápido ou agressivo, o defesa seja inteligente para entender quando deve subir, descer, aproximar ou dar espaço quer ao adversário, quer aos colegas. No fundo, que saiba ler o jogo. Claro que as características físicas não deixam de ser relevantes e que, caso seja possível conjugá-las com uma leitura de jogo assinalável, esse seria o cenário perfeito. Mats Hummels é, hoje, o homem que melhor consegue reunir as características que entendo serem necessários ao melhor defesa-central. É que para além do já referido, o alemão é capaz de dar à sua equipa absoluta segurança no primeiro momento de construcção. Secundário? Já não. Se a equipa que representar estiver mais tempo a atacar do que a defender, ele também ataca mais do que defende. Por estas razões é tão comum ver trincos a serem adaptados ao eixo da defesa, tal qual fez Cruyff no seu Dream Team. Javi Martinez, no Bilbao e no Bayern; Mascherano, no Barcelona; Jara, Medel e Silva, no Chile de Sampaoli são apenas alguns exemplos recentes.

    Mats Hummels é, sempre de cabela levantada, uma referência para os centrais do futuro Fonte: zimbio.com
    Mats Hummels é, sempre de cabela levantada, uma referência para os centrais do futuro
    Fonte: zimbio.com

    O Princípio do Homem Livre

    Embora se trate de um princípio ofensivo do modelo de Guardiola, envolve, antes de quaisquer outros, os defesas. O princípio do homem livre é a forma mais fácil de iniciar (e dar continuidade, depois) à manobra ofensiva da equipa. Requer “apenas” que o portador da bola fixe um adversário, progrida com ela na sua direcção até o atrair e, assim, abra espaços que os seus colegas possam ocupar e, consequentemente, onde possam receber a bola. Ao contrário do modelo habitual, onde os defesas trocam a bola horizontalmente entre si até que o adversário abre um espaço, o princípio do homem livre dá simultaneamente uma verticalidade e uma capacidade de forçar o erro que de outra forma não existe na primeira fase de construcção.  A propósito de passes verticais e horizontais, mais uma vez a opinião de Cruyff é elucidativa e interessante:

    “A horizontal pass? Prohibited. In my line-up there are as many lines as possible. Because you must have the option to pass the ball forward, even if it’s a meter. Because then I can still make up for the loss of possession. After a horizontal pass this is impossible. If it goes wrong you lose two players.”

    De forma prática, numa situação em que a equipa adversária joga com um avançado apenas (o mais habitual), o central que recebe a bola do guarda-redes atrai o ponta de lança e joga no outro central que, por sua vez, imita o processo até que saia um médio na contenção e, assim, a estrutura contrária se desequilibre. Se o adversário jogar com dois avançados, o trinco é o elemento que cria a superioridade e ajuda na primeira fase de construcção. Este é um princípio simples mas que nem por isso é utilizado por muitas equipas. Quantas vezes viu a sua equipa trocar bola entre centrais e laterais e laterais e centrais e centrais e centrais infinitamente até que um deles recorre ao chutão para a frente? O necessário para que o princípio do homem livre funcione é ter centrais com boa capacidade de decisão, entendimento do jogo e técnica que lhes permita receber, fixar, progredir e soltar de forma segura e laterais que subam no terreno de forma a não trazer mais adversários para dificultar esta primeira fase de construcção e consigam dar largura ao jogo para tornar o campo maior e o corredor central mais despovoado. Outro erro comum é fazer descer o trinco mesmo quando o adversário só joga com um avançado; isso irá criar inferioridade e/ou igualdade desnecessária no meio campo – sector mais importante do campo – e dificultar imenso o seu jogo a partir daí, embora facilite a saída. Se os centrais forem capazes de assegurar a primeira fase de construcção, o trinco não deve descer tanto. No fundo, quem quer atacar bem, tem de ter elementos atrás que saibam atacar bem. É tão simples quanto isto. Quem não os tem, corre sempre o risco de começar a jogada com um passe efectuado em condições adversas, chutões para a frente que tornam aleatório o rumo da jogada ou, pior, perdas de bola em zona proibida.

    O princípio do homem livre ilustrado pelo Tactic Zone Fonte: tacticzone.com
    O princípio do homem livre ilustrado pelo Tactic Zone
    Fonte: tacticzone.com

    Olhando para as duplas de centrais dos três grandes portugueses, com Luisão e Jardel, Maurício e Sarr, e Indi e Maicon, estarão os seus treinadores e até as suas estruturas a valorizar os centrais tanto quanto Guardiola ou Cruyff? No próximo artigo o papel dos avançados será o analisado. Até lá…

    A striker must realize he’s the first defender. The transition, on every area of the field, must happen as fast as possible. As soon as the goalie of the opponent has the ball, the striker shouldn’t walk away from him, but put pressure immediately.”

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